Subitamente, ela disse não. Não mais tantos sins, não mais longos silêncios da madrugada insone, não mais "tudo bem, já passa', não mais tanto riso encobrindo as dores de um vazio sem fim. Por isso, subitamente ela disse não. E não era apenas um não feito soluço, nem era um não recheado de 'quem sabe'. Era mesmo um verdadeiro não. Não, e ponto!
Significava, em alto e bom som, aquilo que somente ouve bem quem conhece
a rouquidão estridente das entranhas, aquilo que arranca um som de fim mais
profundo da alma constrita. Era, pois, um não que servia como resumo de um
fardo de sentimentos acumulados pela dor cotidiana do "deixa de
lado", do "vai melhorar", do "vamos em frente",
daquela mesma roda viva que a fez ir deixando tudo para depois. E o depois chegara!
Por isso, justamente por isso, ela disse não! Um não com ares de chega, acabou.
Morreu.
Era vivo o porquê; nela ele já habitava morto. Era um opaco que
luzia indiferença, era um dó sem maior agudo, um sol sem nada grave, era assim,
um tanto faz, um grito surdo moído dentro de si. Por isso, justamente por isso, chegara a hora de dizer não. Talvez fosse
tarde demais, ou quem sabe, ao contrario, pudesse ter sido precoce, algo cedo
de mais. Mas a falta de certeza quanto ao tempo não lhe retirava a inelutável
convicção de que a hora havia soado. Feito dez milhões de sinos tocando ao
mesmo tempo, chegara a hora de dizer não.
Em sua mente, se passaram algo como vinte e cinco anos de casamento. Em
sua frente, todavia, fazia apenas cinco eternos e ensurdecedores segundos nos
quais o padre atônito teria ouvido: "não, não aceito!"
A liberdade pode aniquilar a própria liberdade. Pudera ter realmente
dito não quando a pergunta lhe abrira as portas para a negação. Pensou
mesmo ter dito não. Era o não que em sua boca abria. Contudo, foram poucos
segundos para descobrir que fora um sim que sua boca fazia. Eis a reiteração do
propósito que selava o contrato matrimonial no procedimento de casamento
religioso com efeitos civis.
Quase todos os dias nos dias da vida que ao enlace se seguiu, se
perguntava porque havia traído a si própria? Por que havia se acovardado no
momento decisivo? Mas é certo que podia não ter firmado o pacto antenupcial, e
é também certo que podia ter obstado a seqüência encadeada de atos e fatos que
desde os proclamas se converteram em suposta comunhão de vida. Foi tomada por
uma viagem cujo combustível fora a força inercial do tipo "a gente vai
levando".
Agora, passado um quarto de século que marcava a data do não que não foi
dito, ocorria-lhe que finalmente era tempo de dizer realmente não. Assim, desta vez, decididamente, dirá não. Chega, basta, acabou. Não
mais. Era o não definitivo. Morria o que sequer nasceu!
E a que e a quem agora ela negava? Ao certo, podia ser a tudo o que vivia,
ao espaço pleno de incompletudes, ao museu familiar das mobílias sem sentido,
aos abraços e beijos sem afeto. A tudo. A quase tudo? Nem ela mesma sabia. Só,
sentindo-se somente só, embora cercada de pequenas multidões, começa a negar
a si mesma. Afinal, compreendia, o pacto valido era juridicamente eficaz.
Todavia, os efeitos que em si cabiam eram o que unicamente se esboroa na poeira
do verniz aparente. Um quarto de século sob o juramento de um contrato. A quem
esse pacto socorria? Ao tempo de contidas e passageiras alegrias? Ao regramento
de uma vida vazia?
O que fez nascer o ato de padecer pelo inverso do verbo querer?
Dessa interrogação nascera uma certeza e a si dizia: uma voz mim me
compele a fazer de mim pessoa, não ser um ser sem vida, empurrado de um canto
para o outro, como se fosse quadro a emoldurar a fruição e o prazer de outro.
Essa voz que estava em mim no dia daquele sim, essa mesma voz ainda em
mim vivia. Sombreada, é verdade; sem o vigor da textura vocal juvenil, é
verdade; mas era a mesma voz, de pronto eu a reconheci, a voz da negação não me
abandonara. Não naufraguei nesse mar de falsas ondulações, nesse consumo
propicio a consumir coisas, pessoas e sentimentos. Não! Era a mesma voz,
aquela que deveria ter dito não, não aceito, e fez sussurrar um sim de dar dó,
aquela que se atemorizou com a própria liberdade, essa mesma voz que em mim
nascera para ficar, brotou, cresceu, emudeceu por certo em momento crucial mas
agora retorna em mim como um selo de identidade de mim mesma, de minha alma que
não sucumbiu.
É certo que me foge o timbre, e é
também certo que o peito arfa pelos anos em mim pesados, vertidos no branco de
meus cabelos, nas rugas da testa e nas minhas mãos tremulas. Sim, é certo que
cai em mim o sereno da vida indomada, o açoite dos dias mal vividos, o chumbo
das noites mal dormidas.
Mas a voz em mim ainda aqui está para afirmar o que resistiu e para
virar do avesso essa história mal traçada.
Chegou o momento de reviver e para que eu nasça um pacto vai se enlutar,
para que eu finalmente viva algo deve fatalmente padecer.
A encruzilhada desse destino abre seus abraços e me abraça com um
sorriso de cruz. Surpreendo-me. Colho-me infeliz na felicidade do senso comum,
colho-me incapaz de pronunciar o verbo que me arranque desse chão, colho-me
rodeada de crisântemos que cantam o meu fim.
Foi a vida que passou enquanto eu não estava em mim. Agora até a
voz foge de mim.
Rápido, tragam meu vestido branco rendado, meu lenço de rosas em cor
salmão, quero em mim uma escova para cabelo de baile. Rápido, muito rápido, pois já ouço a valsa da despedida.E assim o
silencio veio caindo como a noite que espanta o sol poente. Sem forças para
resistir, se instala a noite mais triste, e percebo que uma nova manha não irá
romper.
Atrevo-me a um sussurro, um
pequeno gesto enfim. E subitamente, disse não. Subitamente: não!
Era tarde, muito tarde, quando a saudade de mim mesma brotou com a
semente que jazia umedecida pelo orvalho de um adeus.
Por Luiz Edson Fachin
Advogado; professor da UFPR; membro da Academia
Brasileira de Letras Jurídicas; atual presidente da Academia Paranaense de
Letras Jurídicas.
* O texto retrata a exposição feita pelo autor no Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM
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