Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR
Aluna do Curso de Letras da mesma instituição.
Quem me conhece bem sabe que sou implacável com meus livros. Não os trato com a reverência com a qual trato os livros da biblioteca ou aqueles que me emprestam os amigos. Na verdade, trato-os com uma intimidade quase cruel: são cheios de anotações, grifos e página vincadas. A experiência me mostra que aqueles mais “maltratados’ são os meus mais queridos.
Assim é meu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: cheio de pontos de exclamação, estrelas, asteriscos, interrogações e post-its de diversas cores colados sem cerimônia em suas páginas; também há as marcas de café (talvez de um dia de cansaço quando eu procurava uma citação apropriada para um trabalho árido do direito), bem como alguns amassados em sua capa por ter dividido, por algum tempo, desajeitadamente, espaço com meus cadernos, meu notebook e meu vade mecum em minha pasta de estudante de direito.
É essa experiência que quero compartilhar. No grupo de estudos “direito e literatura”, mais ou menos entre 2007 e 2008, em alguma sala do Prédio Histórico da Faculdade de Direito da Praça Santos Andrade (ou, ao ar livre, na praça do subsolo), levamos mais de um ano a saborear a prosa (quase poesia) de Guimarães, deixando que o direito aparecesse somente quando fosse relevante, sem a intenção de forçar um encontro artificial entre direito e literatura.
Nesses momentos especiais, compartilhados com amigos queridos (alunos e professores, os quais não nomearei para não correr o risco de esquecer alguém), o direito apareceria inúmeras vezes, mas sem as formalidades dos tribunais, sem a rigorosidade técnica da ciência e sem a emergência da assimilação de conteúdos dogmáticos. O direito se mostrava emoldurado por histórias, por homens e mulheres, por sentimentos, remorsos e saudades que traziam a complexidade da vida às nossas longas discussões: “Viver é muito perigoso”; “O Sertão é o mundo”; “Moço: toda a saudade é uma espécie de velhice”; “O amor, já de si, é algum arrependimento”; “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele”; “Lei é lei?”.
Assim, meu livro inesquecível carrega consigo a história dos encontros também inesquecíveis do grupo direito e literatura, bem como a profundidade de discussões sobre a essência da vida, da arte, da linguagem, da justiça e do direito que apenas bons interlocutores somados à boa literatura podem proporcionar.
Autoria: Leo Bora |
A boa notícia é que a literatura é generosa: Saramagos, Lispectors, Machados, Homeros e tantos outros estão esperando para se tornarem únicos ao serem desafiados por homens e mulheres do direito, do tipo que não se contentam apenas com as leis, mas que se perguntam pelas contradições que fazem parte da vida – questionamento essencial, que não nos deixa esquecer que as pessoas são verdadeiras protagonistas das histórias que se desenrolam no interior e para além do Prédio Histórico e do direito.
Afinal, o que seria de um prédio histórico sem histórias (vividas e inventadas) e do direito sem narrativas que lhe dessem vida e o reinventassem? Nonada, diria, de forma genial, meu bom e velho Guimarães.
Autoria: Leo Bora |
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