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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

DAYTRIPPER



Ao ser convidado a indicar um livro para os leitores do blog da Biblioteca de Ciências Jurídicas da UFPR, decidi que não escreveria sobre um clássico, e nem sobre um best-seller. Sobre os clássicos, o que precisava ser dito já foi, e por pessoas muito mais capacitadas do que eu a fazê-lo; além disso, o clássico se indica por si só, e a minha opinião leiga pouco poderia acrescentar de estímulo à leitura das instigantes Ficções de Jorge Luis Borges, por exemplo. Quanto aos best-sellers, o mesmo motivo: a ampla divulgação nos meios de comunicação torna desnecessária e óbvia a indicação de um “livro da moda”, por melhor que ele seja – como o bom O Irmão Alemão de Chico Buarque, recém-publicado.

Sobrava a literatura de gênero. Mas qual gênero? Um romance policial de Rex Stout (indico A Confraria do Medo, com o detetive Nero Wolfe)? Um conto espacial de Isaac Asimov (o grandioso Fundação, inspirado no Declínio e Queda do Império Romano de Gibbon)? Talvez uma novela de terror (A Outra Volta do Parafuso, de Henry James)... Acabei optando por escrever não sobre um “gênero menor”, mas sobre um “formato menor”: recomendarei aos leitores do blog uma história em quadrinhos.

“Histórias em quadrinhos não são só para crianças”. De tanto ser repetida, a frase já se tornou um cliché da página de cultura dos jornalões (11.700 resultados no Google, incluídas as variações). Em épocas de “cultura nerd”, promovida pelo sucesso de Big Bang Theory e das dezenas de filmes de super-heróis despejados por Hollywood, ler gibis se tornou cool. Mas o hype em torno dos quadrinhos não foi suficiente para eles se tornarem verdadeiramente conhecidos fora de um pequeno círculo de iniciados, e o grande público, mesmo quando bem informado, continua achando que o formato se resume aos três gêneros tradicionais: infantil, super-heróis e cartuns. 

Ainda que grandes obras possam ser indicadas nesses três gêneros (Maurício de Sousa por 50 Artistas, com releituras da Turma da Mônica; Miracleman, escrito por Alan Moore antes de seu grande sucesso Watchmen; Macanudo, do argentino Liniers), histórias em quadrinhos são apenas um formato artístico, aberto às mais variadas expressões subjetivas. Ao lado dos gêneros tradicionais encontramos obras tipicamente associadas à grande literatura, como o romance policial (Diomedes, o anti-herói de Lourenço Mutarelli), a crítica política (o divertido Marco Mono de Trillo e Breccia, sátira da ditadura militar argentina), a reportagem política (Palestina, de Joe Sacco), o jornalismo histórico (Maus, de Art Spiegelman, premiado com o Pullitzer), a autobiografia (Persépolis, de Marjane Satrapi, vencedora do Oscar de animação) o erótico (Os Bórgia, de Milo Manara, com conteúdo histórico), o terror (os primeiros números do Sandman de Neil Gaiman, que depois se aproximam da tragédia shakespeariana), o fantástico (O Arzach, de Moebius), o épico espacial (Saga, de Brian K. Vaughan e Fiona Staples), a ficção científica (O Eternauta, de Oesterheld e López, crítica velada à ditadura argentina), etc., e também obras que sequer se encaixam em um dos gêneros tradicionais, tratando-se, simplesmente de boa literatura. É o caso de Daytripper, de Fábio Moon e Gabriel Bá (que alguns se esforçam para classificar no campo do realismo fantástico latino-americano). 
 


Os irmãos gêmeos Moon e Bá (nomes artísticos, obviamente) são atualmente os enfants terribles do universo dos quadrinhos. Iniciaram a sua carreira no mundo underground, publicando de modo independente o fanzine 10 Pãezinhos, que teve 40 edições. Em 1999 receberam o primeiro de uma longa coleção de prêmios, dentre os quais se destacam um Prêmio Jabuti pela adaptação aos quadrinhos de O Alienista, de Machado de Assis (2007), um Harvey Awards por The Umbrella Academy (Gabriel Bá e Gerard Way, 2008) e, em 2011, um Harvey e um Eisner (o prêmio máximo das HQs) por Daytripper. Ainda assim continuam simpáticos, e autografaram a minha cópia da revista quando vieram a Curitiba em 2011.


Publicada originalmente em inglês pelo selo Vertigo, da DC Comics, a história não tem um título que possa ser traduzido para o português. A gíria inglesa “daytripper” se refere a um passeio turístico breve, com duração de apenas um dia; foi imortalizada na conhecida canção dos Beatles com o sentido particular de uma relação amorosa breve, sem intenções de seriedade. No gibi também tem um duplo sentido: refere-se, em primeiro lugar, à carreira de Brás de Oliva Domingos, jornalista responsável pela seção de obituários de um jornal paulista; mas refere-se também, por outro lado, à estrutura da obra, composta de pequenas histórias com a duração de poucos dias na vida de Brás – mas não conseguirei falar sobre isso sem revelar partes do enredo.

[INÍCIO DOS SPOILERS] 32, 21, 28, 41, 9, 33, 38, 47, Sonho, 76: estes são os títulos, às vezes não explícitos, dos dez capítulos da obra. Referem-se às várias idades nas quais se apresentam alguns dias da vida de Brás Domingos, com uma pequena peculiaridade: todos eles acabam com a sua morte. Como um Brás Cubas invertido, Brás Domingos não se apresenta como um defunto autor, mas, repetidamente, como um autor prestes a se tornar defunto. A constante proximidade da morte preenche de significado cada pequeno instante de sua vida (curta ou longa), que, contrapondo-se ao cinismo niilista machadiano, encontra o seu sentido mais profundo justamente no amor – na transmissão, a outras criaturas, do “legado de nossa miséria”. 

O spoiler pode fazer com que a história perca um pouco de sua força, mas não está na surpresa o fundamental da obra; após o final da terceira ou quarta história se torna perceptível o padrão estabelecido, e a morte do protagonista passa a ser antecipada pelo leitor. O interessante é perceber como, em cada uma das histórias, a morte se apresenta simultaneamente como interrupção inesperada e conclusão adequada de uma vida bela e completa, independente da idade em que o herói se encontra. Não importa quando a morte chega, ainda há sempre algo a ser feito; não importa quando a morte chega, o que realmente importa sempre já foi feito. No final das contas, todos vivemos o mesmo tempo: uma vida inteira (como já explicava a Morte de Neil Gaiman, em Sandman 43) [FIM DOS SPOILERS].

Entre diversas mortes, sem muitas preocupações com linearidade temporal ou relações de causalidade, Moon e Bá apresentam uma profunda reflexão existencial sobre o sentido da vida. A arte delicadamente equilibrada entre o fantástico e o real transmite um lirismo pungente a cada cena, e a capacidade dos gêmeos de retratar sentimentos e expressões faciais é inigualável na indústria dos quadrinhos. O cuidado técnico se percebe em cada mínimo detalhe, da colorização em aquarela à estrutura narrativa, passando pela fidelidade às paisagens originais (a história se passa em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador) e pelo cuidado com os detalhes da cultura brasileira, capaz de encontrar no regional uma motivação humana e universal.



Tudo isso faz com que, para o leitor, seja inevitável enxergar em Brás Domingos o seu próprio reflexo. Afinal, não é a sua, a condição humana? Como explica Benedito Domingos, o pai do herói que dá voz aos autores, a bela e profunda história sobre a morte escrita por Moon e Bá acaba sendo, na verdade, uma história sobre a vida: 

A vida é como um livro, e todo livro tem um fim. Não importa o quanto você goste do livro, você vai chegar na última página e ele vai terminar. Nenhum livro é completo sem o fim. E quando você chega lá, somente quando lê as últimas palavras, é que você vê como o livro é bom. Ele parece mais real.
Agora vá brincar.


 

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