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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Algumas reflexões sobre o ensino e a prática jurídica

 


Em 1982, ao assistir à semana do calouro na Faculdade de Direito da UFPR (eu era um deles), ouvi um alerta a respeito do qual penso até hoje. Quem o fez foi o saudoso professor José Lamartine Corrêa de Oliveira, ao recomendar que não se realizasse estágio antes do quarto ano. Como sempre magistral, ele apontou dois motivos: os alunos deveriam aproveitar o tempo para estudar e, por outro lado, só a partir do quarto ano haveria disciplinas que possibilitariam a compreensão do que se faz no estágio. Sem o estudo de formação seria impossível viver o Direito. Estagiar desde o primeiro ano implicaria perda de oportunidades.

Mais recentemente, em 2011, o professor António José Avelãs Nunes, catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra, externou preocupação semelhante na Escola de Altos Estudos da Pós-Graduação em Direito da UFPR. Os estágios desde o primeiro ano inibiriam as perspectivas acadêmicas e fechariam portas, a desvirtuar o papel da universidade. Afinal, espera-se que o ensino superior – sobretudo em universidades públicas – promova a formação de cidadãos e de sua autônoma conscientização de que são necessários esforço e comprometimento social. Quem faz estágio tem o seu tempo direcionado para outra ordem de prioridades.

Tenho que tais avisos são marcantes e precisam inspirar maiores reflexões. Não somos onipresentes e uma escolha sacrifica a outra: quem estagia tem menos tempo para o estudo. Aprende outras coisas, mas não se aprofunda nas disciplinas fundamentais. Porém, atualmente é bastante complicado cumprir tais diretrizes. O que inspira cogitações tanto a respeito do que se passa em nossas faculdades como a propósito do tempo dedicado ao estudo. Este breve texto pretende problematizar, de modo assistemático, apenas algumas delas.

Não parece haver dúvida de que, no mundo das faculdades de direito, existe séria competição: são centenas de cursos, a formar milhares de bacharéis todos os anos. A oferta é muitíssimo maior do que a demanda. Isso instala o correspondente incentivo para o estágio a partir do primeiro ano: seja por status, seja pelo dinheiro ou pelo currículo, seja porque, afinal de contas, quase todos fazem estágio desde cedo. Existe também a ânsia por experimentar todas as possibilidades, ano após ano: sucessivos estágios no Judiciário, Ministério Público, Procuradorias, Defensoria, escritórios de advocacia, departamentos jurídicos corporativos etc., a fim de que se possa fazer a escolha certa quando chegar o dia seguinte à formatura (como se houvesse só uma...).

Além disso, o conhecimento jurídico é cada vez mais precário. Não é possível exercer qualquer profissão só com a quantidade de informações adquirida na faculdade – e o Direito a isso não escapa. São tantas as fontes normativas (tratados internacionais, emendas constitucionais, leis, medidas provisórias, regulamentos, contratos) a se movimentar em tamanha velocidade, que em pouco tempo torna-se antigo o que se acabou de aprender. O estudo do Direito não se esgota na graduação: ela é só o dia de uma longa jornada noite adentro. Constatação que se estende aos professores: não merece qualquer prestígio a ideia de que bastaria a preparação das fichas de aulas, para repeti-las por igual durante décadas a fio. Logo, há dupla perspectiva: se o estudo não se esgota nos bancos escolares, por que insistir em só estudar e não estagiar? Afinal, seremos alunos para sempre...

Por fim, existe um dado acessório que precisa ser levado em conta: a ansiedade dos exames e concursos. O primeiro é o da OAB, realizado antes mesmo da formatura. A vontade de antecipar-se é tanta, que as provas da graduação ficam em segundo plano: o importante é passar na Ordem. Em segundo lugar, nem bem concluíram os cursos, os alunos se submetem ao ingresso em mestrados; cursos de especialização; MBAs; preparatórios para concursos etc., etc. A vida acadêmica – entenda-se o que se quiser por isso – não para no curso superior.

Assim, parece-me que os alertas de Lamartine e de Avelãs Nunes estão cada vez mais atuais e instalam novos desafios. Exigem que se pense o que pretendemos ao estudar – ou a lecionar – Direito. Afinal, qual é a responsabilidade primária dos professores nesse cenário de extrema complexidade? Estimular a formação de cidadãos ou assegurar respostas certas em provas de concursos? E qual é a principal responsabilidade dos alunos? Emancipar-se culturalmente ou conseguir um bom emprego?

* Texto originalmente publicado no Caderno Justiça e Direito do Jornal Gazeta do Povo.

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